3 de agosto de 2010

No chão da praça

Na rua se vê o povo de uma cidade. Ali nasce a comunidade e desemboca toda política, mesmo aquela gestada a portas fechadas. Apesar do culto ao individualismo e da crescente privatização do chamado mundo globalizado, apesar de muitas atividades sociais terem se retirado para espaços preservados do contato indistinto com o homem comum, a rua ainda é o espaço público por excelência.


Por que um grupo de atores a elege como seu local de trabalho? Talvez porque não tenha um público espontâneo que saia de sua casa com o propósito de encontrá-los no lugar marcado de um teatro. Talvez porque, por meio do dinheiro empenhado no ingresso, este público exija uma cumplicidade que estes artistas não querem estabelecer. Talvez porque o público da rua, carente e ávido da representação de sua subjetividade, se saiba livre para ir embora a qualquer momento sem que o peso do ingresso o amarre ao chão. De qualquer modo, a presença sistemática de um grupo de teatro na rua não pode ser casual: trata-se de uma escolha feita a partir do consenso em torno de valores capazes de fazer com que esta atitude se constitua em uma opção estética, ideológica e profissional.

Ao levar à rua uma obra produzida em processo coletivo, o grupo quer plantar no chão da praça. Não mais com a ilusão de conscientizar o povo, não mais com a pretensão de ser popular. Eles se nutrem da utopia de que o público possa formar um cortejo e sair pelas ruas cantando as canções de seus avós. O espectador se converteria em celebrante e sob as diferenças individuais surgiriam as origens culturais que permitem aos cidadãos se reconhecerem em alguns mesmos elementos. É na seleção destes elementos que o grupo manifesta a sua identidade e se coloca como contraponto à cultura de massa e à indústria do consumo. A utopia, que se realiza e se renova a cada espetáculo, reside na hipótese de que esta identidade seja capaz de ecoar no espectador de modo a ativar-lhe a consciência de si mesmo, de seu ser e estar no mundo.

Estamos, todos nós, brasileiros, assistindo a uma transformação histórica que pode ser muito profunda. Ao optar pela mudança, decidimos investir na construção de novos paradigmas éticos. O teatro está inserido neste processo e, do ponto de vista do artista, isto significa a oportunidade de repensar sua função social. O crítico Yan Michalski escreveu, nos anos 80, que a distribuição de personagens na dramaturgia nacional estava reproduzindo a pirâmide social do país. Este quadro, que se agravou na década de 90, parece começar a ser revertido: senão nos espetáculos que ocupam as grandes salas comerciais das capitais, pelo menos entre os grupos que, procurando alcançar o cidadão brasileiro, descobrem um objetivo maior do que estampar seu nome no papel dos jornais. Fazendo do teatro seu ofício, especializando- se em uma modalidade estética ignorada pelos críticos e historiadores, eles buscam comunidades alijadas do processo de desenvolvimento e, sob o conceito de inclusão social, retiram o próprio teatro de sua exclusão cultural. Escolhem a rua para cruzar a fronteira dos guetos e comemorar o encontro de cidadãos que partilham a mesma língua, a mesma sociedade, o mesmo tempo histórico.

*Autora da pesquisa "Teatro de grupo: utopia e realidade". Este texto foi originalmente publicado no Folhetim da Farândola Troupe, Respeitável Público, Ano I, número 1, Junho de 2003. Agradecemos a Neto de Oliveira a indicação.
Rosyane Trotta *

Ps: Esse Texto tem como fonte de Origem da Rede de Teatro de Rua do Brasil.

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